segunda-feira, 1 de março de 2010

O Coração do Artista

De maneira evidente, a cultura evangélica jamais experimentou antes, tal como nos últimos anos, uma acentuada preocupação com a adoração comunitária: o número de ministérios de louvor, bandas e cantores solo aumentam exponencialmente. Centenas de livros, palestras e Workshops. O número de ministros (pregadores), especialistas no assunto também. Números não podem definir qualidades. A quantidade de pessoas interessadas em adoração não define precisamente o comprometimento em adorar. Dentro das comunidades cristãs o altar se tornou um bem de consumo, e por isso, uma fonte de status e popularidade – definição contemporânea de espiritualidade. Consequentemente, motivo para inúmeras disputas por poder. Desse modo, o altar se tornou o indicador de um enganoso tipo de espiritualidade que faz do sagrado momento de culto apenas um espetáculo bem encenado, apenas uma forma de entretenimento: se esquece a quem se cultua, isso porque não se sabe por que se cultua.

Quem é o artista? Como distingui-lo da multidão?

É sensato afirmar que Deus ao criar, expressa em toda a sua obra parte da sua identidade, personalidade, senso estético e porque não dizer, seu bom humor. Deus é artista! É só olhar a praia num dia ensolarado: o mar azul, agitado, as ondas batendo nas encostas das rochas... Beleza que impressiona os olhos. É só olhar o céu numa noite de verão: estrelas que mais parecem pequenas faíscas de luz, vaga-lumes imóveis no céu, acompanhada pela lua redonda e luminosa. Beleza que emociona. Tal como o nascimento de uma criança.

Deus ao criar o homem também lhe concede a oportunidade de ser criador. É correto afirmar que todos os homens sem exceção possuem a capacidade de criar: uma tela, uma música, uma escultura, um livro. Não podemos distinguir a história das civilizações de tudo aquilo que elas produziram como arte, seja para entretenimento, sobrevivência, guerra ou fé... Arte é toda forma de beleza que congrega pessoas, que gera espanto, admiração. Entretanto, o artista se distingue por não se restringir em apenas criar. Sua força criadora é obsessiva, é feita com paixão. O artista tem paixão por criar. É exatamente por isso que com freqüência cria por impulsão e compulsão.

Enquanto criador compulsivo, todo artista tende a exercer certo tipo de exigência sobre sua capacidade em produzir, neste aspecto, alguns podem tender para o perfeccionismo. Outros, porém, exercem certo tipo de exigência sobre a receptividade coletiva sobre tudo aquilo que produzem. Neste aspecto, alguns podem adquirir alguns problemas com o ego. Seja tanto por uma exagerada alta estima, como também por uma estima baixa. Em síntese, é comum a natureza artista certa instabilidade com o meio: o que define tal instabilidade é exatamente sua crença natural de que sempre há um problema, seja naquilo que produz (nesse caso tende a considerar que o problema é ele mesmo), seja no modo como as pessoas recebem sua obra (nesse caso tende a considerar o problema como sedo o próprio público). Como conseqüência, todo artista é marcado, a sua maneira por uma forte personalidade melancólica. Aristóteles dizia que “todos os homens extraordinários, de destaque na filosofia, na política, na poesia e nas artes são evidentemente melancólicos” (pág.12).

Somos na maioria das vezes vistos como demasiadamente analíticos, mal-humorados, insociáveis, e super sensíveis. O que mais me incomoda é que se você é rotulado como melancólico, automaticamente pressupõe-se que seja um sujeito emocionalmente desajustado (pág.14)

Rory Noland em O Coração do Artista tem uma outra interpretação para essa forte personalidade melancólica: ela apenas determina :

... que pessoas sensíveis tem muito coração (...). Por esse motivo, os artistas frequentemente pronunciam-se contra a injustiça, as desigualdades e a hipocrisia. Eles abraçam a causa dos que estão sofrendo. Eles nos fazem mais sensíveis para com os perdidos e solitários e à condição dos oprimidos (pág.14).

O artista é um agente de ruptura, logo, de transformação. O mesmo ideal transformador tem o evangelho! É nesse aspecto que a arte pode se pactuar com os ideais da fé: para transformar vidas:

É por isso que a igreja precisa dos artistas. Nós precisamos de artistas na igreja que tenham paixão pelo poder das artes (...). Quando Deus unge as artes, há um poder tremendo liberado por Ele para penetrar nos corações, mentes e almas. Nós como povo de Deus não devemos perder de vista o quão poderosas as artes podem ser na igreja (pág.19).

A igreja precisa de artistas! E quando artistas se comprometem com o ideal transformador do evangelho, o culto se transforma numa obra de arte que glorifica a Deus, o maior dos artistas.

Há ocasiões quando um pregador fala às paredes. Pegue esta mesma mensagem e coloque nela uma linda melodia ou qualquer outra forma de arte, e ela toca as pessoas (pág.21-22).

Entretanto, o culto enquanto pura manifestação artista tende apenas ao banal espetáculo, ao oculto idólatra de personalidades egoístas e mesquinhas. A igreja necessita de artistas comprometidos com Cristo. Necessitamos de artistas na igreja que sejam conhecidos não apenas por seu talento, mas também por sua caminhada com Cristo (pág. 24). É nesse aspecto que a igreja ganha importância na vida do artista, a fim de construir nele, valores autenticamente cristãos e comprometidos com o Reino de Deus. Os artistas também precisam da igreja! Para o estabelecimento de um caráter comprometido com a fé em Jesus. O que significa fazer do caráter algo mais importante que prestígio e reputação. Preocupe-se mais com o seu caráter do que com a sua reputação, porque o seu caráter é o que você realmente é, enquanto que a sua reputação é meramente o que os outros acham que você é (pág.30).

Sempre quando nos referimos ao caráter do artista cristão, inevitavelmente estaremos lidando com o comum conflito entre o artista e o servo, sobre as reais motivações que nos levam a cultuar e sobre o nosso relacionamento com outros artistas cristãos e irmãos em Cristo. Inevitavelmente estamos falando de ética. De ética cristã.

Precisamos olhar para o íntimo do nosso coração e ficarmos com os olhos atentos em nossas motivações, porque a bíblia diz que o coração humano é “enganoso” e “desesperadamente corrupto”...(pág.39).

Quando artistas têm mais confiança em seus dons no que no Senhor, deixam o palco mais preocupados com a impressão que causaram ou o som que produziram do que se Deus os usou. Estão mais interessados na técnica que na substância (pág.40).

Rory defende que a base da ética cristã para o artista é a humildade. Ele diz: Serviço cristão começa com humildade. Humildade significa mover-se do egoísmo para a doação a Deus (pág. 41).

....milhares de humanos tem sido levados a pensar que a humildade significa garotas bonitas tentando crer que são feias e homens inteligentes tentando crer que são tolos (Rory citando C.S.Lewis – pág.42).

Devemos julgar a nós mesmos com um julgamento correto. A verdadeira humildade significa termos uma visão acurada de nós mesmo, entendendo que não somos mais nem menos do que na verdade somos. Devemos conhecer nossos pontos fracos e fortes. Devemos saber no que somos bons e no que não somos (pág.42).

Devemos abandonar qualquer pensamento de superioridade que nos faça pensar que merecemos tratamento especial (pág.43).

Muitos relutam em ser servos quando têm que trabalhar na obscuridade (pág. 56).

Quem é o artista cristão?

Defini-lo é antes de tudo afirmar que arte é fé são compatíveis, que a verdade também expressa beleza, de que o divino é belo, e que por isso, diante da sua manifestação, congrega pessoas, que as motiva à admiração, à devoção. O artista cristão é resultado dessa compatibilidade entre arte e fé, entre beleza e verdade. A arte para ele se orienta nas profundezas da verdade do evangelho. Quando falamos de verdade sempre quando nos referimos aos evangelhos, falamos implicitamente de princípios. Para que o artista seja de fato cristão, e para que sua arte seja definida como tal, ele parte de princípios éticos bem definidos pelas escrituras, que nos foram legados por Jesus. O artista cristão possui ética, mas não uma ética qualquer, ele possui a mesma ética que Jesus.

A palavra ética define um conjunto de valores estabelecidos para uma boa convivência em comunidade. Definir o artista cristão é descrever como o artista que é cristão vive na comunidade onde vive (sociedade) e expressa sua arte (igreja). No capítulo um de O Coração do Artista, Roy Roland, irá afirmar que o artista cristão se define por um caráter (logo, um conjunto de valores) cristão. No segundo capítulo, irá afirmar que o primeiro desses valores é a humildade. No terceiro capítulo ele irá descrever como se estabelece a relação entre o artista e a comunidade, particularmente, a igreja. A manifestação da beleza divina congrega pessoas. Surge a igreja, sua missão e propósito de expandir a fé em Cristo. O artista cristão participa dessa missão quando sensibilizado diante da beleza do divino, é inspirado por ela a contagiar as pessoas com essa mesma fé.

Todo artista possui uma busca natural por autonomia, principalmente quando produz sua arte. Esse é um problema que o artista cristão terá que aprender a vencer em sua comunidade de fé. Ele terá que aprender a trabalhar em equipe.

(...). Parte do que fazemos como artistas, fazemos sozinhos (...). Fazer com que artistas que sejam basicamente introvertidos e independentes funcionem como um time, não é uma tarefa fácil (pág. 61).

Como um ser que procura independência, todo artista possui uma tendência natural a serem mais egoístas, murmuradores, competitivos e a não resolverem muitos de seus conflitos de relacionamento. O artista cristão, diferente do artista comum, fundamenta sua conduta na palavra de Deus, sendo assim, ele é conduzido por um conjunto de princípios éticos cristãos, que fazem da sua arte e da sua pessoa uma forma de comunhão, de convergência. Rory Noland sintetiza tais princípios éticos da seguinte maneira (dentre os quais cito alguns):

• O membro de equipe está comprometido com a causa de sua equipe:

No ministério estar comprometido com a causa de uma equipe significa que colocamos a missão da igreja sobre todas as coisas, acima de nossa própria agenda. De tempos em tempos ouço histórias de ministérios de artes nos quais os membros da equipe não estão sintonizados. O resultado é que músicos, membros de grupo de teatro, dançarinos, e etc., estão buscando seu próprio interesse em vez de se reunir para um bem comum (pág. 67).

• O membro de uma equipe está comprometido com a solução de conflitos de relacionamento:

Se cada membro da equipe assumir a responsabilidade pela unidade dela, a equipe irá “pensar a mesma coisa, ter o mesmo amor, e ser unidade alma, tendo o mesmo sentimento”(Fil. 2:2). (pág. 68).

A nossa unidade é frequentemente um testemunho mais poderoso que a nossa música (pág.69).

• O membro de uma equipe encoraja e apóia seus colegas:

Quando se trata de artes na igreja, precisamos cultivar um ambiente que seja encorajador, doador e colaborador. Isto é parte do que significa sustentar artistas, especialmente os artistas com quem servimos. Muitos de nós não têm dificuldade em encorajar alguém cujos dons não apresentem ameaça ao nosso ministério. Nosso caráter é verdadeiramente provado quando apoiamos àqueles que têm o mesmo dom que temos (pág.71).

• O membro de uma equipe não se apega ao seu dom:

Se seus talentos e habilidades são de Deus, a quem realmente eles pertencem? A Ele. Eles são emprestados a nós e temos que ser mordomos fiéis dele. Assim sendo, podemos abrir mão dos nossos dons e deposita-los aos pés de Jesus para que possam ser usados para edificar Sua Igreja conforme a sua vontade (págs.72-73).

O artista cristão sempre está na tensão entre o que se é (artista) e o que deve ser (cristão), como defende Roy, uma convergência é possível, entretanto, sem antes passar por conflitos que devem ser superados por todo artista que procura progredir em seu ministério, enquanto cristão. Os capítulos quatro e cinco irão tratar separadamente sobre dois desses conflitos: o perfeccionismo (confundido muitas vezes no ministério com uma suposta procura por excelência) e o modo como o artista cristão deve lidar com as críticas de seu trabalho ministerial.

O perfeccionismo é uma postura típica de muitos artistas, e significa uma certa insegurança quanto a qualidade de seu trabalho, logo também, de seu desenvolvimento quanto artista. Como Defende Roy, ele tem a tendência de maximizar o negativo e minimizar o positivo (pág.83):

O perfeccionista é culpado de pensar em preto branco. Algo é ou totalmente bom ou totalmente ruim(...). Perfeccionistas têm a tendência de serem muito críticos. E lidam muito duramente consigo mesmos quando falham. Como resultado, perfeccionistas acabam enveredando no hábito de falar mal de si mesmos ou negativamente (pág. 84).

Roy aponta como causa para o perfeccionismo uma auto-estima baseada na performance e não na identidade e a idealização de expectativas altas e impraticáveis. Entretanto, apresenta algumas maneiras de aprendermos a tratar nosso perfeccionismo: Não fazer da auto-estima um deus e estabelecer expectativas realistas para a vida. A excelência, por outro lado, simplesmente significa que o artista se apresenta ou cria com habilidade (pág.95) e envolve criatividade, originalidade e preparação espiritual.

Muitos artistas também são reconhecidos por terem uma postura defensiva:

Às vezes aqueles dentre nós com temperamentos artísticos tomam posturas defensivas quando criticados. Ficamos sensíveis além da conta, deixando que coisas muito pequenas nos firam (pág. 105).

O que começa como um mecanismo de defesa contra a dor acaba levando a um sofrimento ainda maior: solidão e alienação (...). Num esforço para proteger nossa auto-estima, nos abrimos para algo mais prejudicial do que um ego ferido, que é nos iludirmos sobre quem somos (págs. 106-107).

Toda a avaliação, mesmo que negativa, nos motiva ao crescimento. Entretanto, isso só acontece quando estamos dispostos a isso. Todo crítica nos sugere um caminho para mudança. É preciso ter discernimento, e isso somente pode acontecer num coração sensível a vontade de Deus.

Artistas normalmente possuem um aguçado senso de competitividade:

Você já invejou os talentos de um outro artista? Você já sentiu ciúme do sucesso de alguém? E você é um artista, precisa saber como lidar com ciúme e inveja, porque sempre haverá alguém mais talentoso, mais bem sucedido, mais em destaque, mais atraente ou mais proeminente no ministério que você (pág.123).

O ciúme e a inveja são formas de rivalidade oriundas da insegurança. Todo artista teme não ser talentoso o suficiente. O ciúme e a inveja são frutos do medo de ser deixado de lado pelos holofotes. São frutos do medo do anonimato e falta de reconhecimento. Diferente do artista comum, Deus chama o artista cristão para trabalhar em equipe, extinguindo por isso todo sentimento de rivalidade através do diálogo e profunda devoção a Deus.

Deus nos quer trabalhando juntos, e não um contra o outro. Em vez de competirmos uns contra os outros, podemos aprender muito uns com os outros. Podemos ser irmãos e irmãs ao invés de rivais (...). É um sinal de caráter quando não mais nos sentimos ameaçados pelos talentos e habilidades de outros. Isso é resultado de estarmos seguros sobre quem somos como indivíduos, como artistas únicos e individuais, e de confiarmos na obra de Deus em nossas vida (pág.133).

Como um ser predominantemente instável, todo artista tende a ser intensamente emotivo. Daí rompantes exagerados de fúria e felicidade, numa confusa mistura de sentimentos quando em grupo. Seriam as emoções amigas ou inimigas do artista cristão? Poderiam as mesmas lhe auxiliar ou prejudicar em sua vida cristã? Alegrias e tristezas são experiências naturais de todo ser humano. O artista cristão transforma essas experiências em adoração. Particularmente, em adoração comunitária. Com isso, é como se ele dissesse a Deus: “Seja na dor ou na alegria, somos de Cristo e estamos com ele sempre”.

Foster escreve: “nós podemos ter um sentimento de sequidão, solidão, mesmo perdição. Qualquer dependência extrema sobre a vida emocional é retirada. A noção frequentemente ouvida hoje de que tais experiências deveriam ser evitadas e que devemos viver em paz, conforto, alegria e celebração, apenas nega o fato de que muito da experiência contemporânea é conversa superficial. A noite escura é uma daquelas maneiras que Deus usa para levar-nos à quietude, ao repouso, a fim de que possamos produzir uma transformação interior em nossa alma (pág. 142).

É preciso saber controlar as emoções. Sua intensidade pode gerar circunstâncias que fogem do nosso controle, inclusive ao pecado.

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