quinta-feira, 25 de março de 2010

O que é anarquismo cristão? - uma leitura de Tiago 4.4* (por Diogo Santana**)

"A força moral de um único homem que insiste em ser livre é maior do que a de uma multidão de escravos silenciosos." (George Woodcock - historiador inglês)

RESUMO

O que é anarquismo e até que ponto seus princípios podem ser justificados como práticas legitimamente inseridas dentro da tradição cristã ? Até que ponto o cristianismo pode ser considerado como compatível ao pensamento libertário, o mesmo que censura o poder do Estado, do militarismo, das hierarquias e das instituições? De que modo a relação entre cristianismo e anarquismo altera nossa maneira de pensar a tradição cristã? Qual é o papel e significado da igreja diante dessa perpectiva de interpretar todo o legado de Jesus Cristo? Questões que hoje, nos forçam a repensar a identidade pela qual se formou o cristianismo, sua história, tradição e pensamento.
"Para alguns, Jesus é um anarquista, pois não tem nenhuma noção de governo civil. O governo lhe parece pura e simplesmente um abuso. Ele fala disso em termos vagos e como uma pessoa do povo, que não tem idéia alguma de política. Todo magistrado lhe parece um inimigo natural dos homens de Deus; anuncia aos seus discípulos rixas com a polícia, sem imaginar sequer que isso fosse motivo para se envergonhar. Mas nunca se nota nele a intensão de tomar o lugar dos poderosos e ricos. Ele quer aniquilar a riqueza e o poder, e não se apoderar deles. Prediz a seus discípulos perseguições e suplícios, mas não deixa entrever uma única vez o pensamento de uma resistência armada (...). Os fundadores do reino de Deus serão simples. Nada de ricos, nada de doutores, nada de padres: apenas mulheres, homens do povo, humildes, crianças. O grande sinal do messias é a “ boa nova anunciada aos pobres”. A natureza idílica e doce de Jesus chegava aqui ao seu auge. Uma imensa revolução social, em que as classes serão alteradas, em que tudo quanto é oficial neste mundo será humilhado, eis seu sonho. O mundo não acreditará nele; o mundo o matará." (RENAN, 2004)


HOMO E PÓLIS

A existência vista apenas por um ângulo jamais poderá experimentar integralmente a si mesma, sempre será vítima de um sentimento de ser apenas um fragmento cujo sentido é apenas reconhecido na sua relação com a pólis. É nessas circunstâncias que fazer política ganha importância, exige antes de tudo que se reconheça um sentimento de dependência, onde o sentido de ser homem está inevitavelmente ligada a natureza da sociedade organizada politicamente. Entre homo e pólis existe o sentido, que justifica tanto a existência de um como de outro, através de uma história que tem sua origem entre os filósofos gregos. Toda doutrina social ou política, cujo propósito se estabelece em justificar a existência do homem em coletividade, é precedida por uma compreensão do homem que se adeqüe a tal empreendimento. A existência de todo e qualquer governo político somente pode ser justificada através da compreensão de um homem cuja natureza é destinada espontaneamente à existência numa coletividade organizada politicamente.

O que é ser homem? Pergunta que inquietava os maiores cérebros da Grécia antiga, os de hoje porém, nem tanto. Em outras palavras: Onde está o sentido da nossa humanidade? O que nos torna legitimamente humanos? Aristóteles ao afirmar que o homem é um animal político, sustenta a tese de que é exatamente a organização política das comunidades humanas que emerge o homem da animalidade para a racionalidade. Estabelecendo assim a superioridade da sociedade sobre o indivíduo.
"A primeira cidade foi uma criação de Caim (Gn.4.17), enquanto que Sete e sua geração vivia em tendas. A criação de cidades exigia antes de tudo, a demarcação de território fértil para cultivo renovável do solo (exigindo com isso uma técnica agrícola – lembrando que Caim foi agricultor) e alimentação dos animais, tal demarcação exigia a construção de muralhas, exército, armas para a defesa do território. A guerra nasce com a origem das cidades, na defesa em que seus moradores fazem de seus territórios contra invasões, nascendo daí a noção de povo, língua, religião e raça própria, de uniformização da cultura. Com o aumento da população se diminui o espaço por habitante, surge a necessidade de expandir territórios – ocasião para uma nova guerra, dentro e fora do espaço urbano, origem da criminalidade e das campanhas militares (que na época era oriunda da posse ilegal de terras, fonte de toda a riqueza). O bandido é o soldado que luta contra o seu próprio país ou ainda, o soldado é o bandido que luta contra o país dos outros, nesse aspecto, ambos são moralmente idênticos, e se condenamos a ação do bandido, devemos condenar também a ação do soldado. E tanto presentes com o bandido, quanto presentes com o soldado, estão as ferramentais indispensáveis para a origem e o fim de conflitos - visando sempre a conquista de novos territórios e a defesa do território atual – as espadas de aço, as lanças, os cadafalsos... a cruz." (SANTANA, 2007)

Sendo assim, se torna evidente a origem centralizadora das primeiras cidades. Como um poder centralizador, todo o poder era restrito ao dono das terras e de suas famílias, que por causa disso, galgava facilmente à condição de divindades. Surge as primeiras comunidades monárquicas, de caráter religioso, como é o caso dos egípcios, babilônicos e etc. Com o crescimento das cidades, o nomadismo se torna inviável, por outro lado, isso gera tantas responsabilidades para os donos das terras que administrá-las com pouca mão de obra e recursos se torna impossível. Nasce assim a falência do poder monárquico, o que significa a descentralização do poder político aos donos das terras e suas famílias. O Estado nasce como

ANÁRKHOS

A palavra anarquismo é originária da expressão grega Anárkhos, que literalmente significa sem “governo” ou “sem governante”. Sendo assim, nos oferece uma infinidade de contribuições sobre a questão da autonomia entre homem e governos. Anárkhos significa uma distância entre o humano e o político: o ser humano é universal, o ser político é limitado a condições geográficas, econômicas, culturais, linguísticas, etnológicas e etc. Fruto de todo tipo de preconceito e segregação: o racismo, o nazismo e todo tipo de autoritarismo são bons exemplos disso. Enquanto distância com o ser político Anárkhos significa conceber a liberdade social como o verdadeiro Sentido de humanidade. Loucura, insanidade, inadequação a normatização da pólis, inconformidade. Anárkhos significa que o sentido do humano, sua identidade e verdade, não se encontra na identificação de sua posição na pólis, nem mesmo pode ser oriunda de esforços coletivos na construção da identidade individual. Em suma, a Polis limita o humano a uma condição que somente pode ser vivida e experimentada a certas condições específicas dentro do corpo político, enquanto que anárkhos não determina restrições específicas para a manifestação do humano.

Anárkhos distingue homo de pólis, sendo assim, não restringe a identidade do indivíduo e sua igualdade com o seu semelhante a um conjunto de atributos culturais, linguísticos, étnicos, religiosos e etc. Alienação? De maneira nenhuma! Oposição. Em outras palavras, que a condição humana não é construída pelo meio social organizado politicamente. Esse é um aspecto fundamental que evidencia uma diferença entre anarquismo e comunismo: o comunismo não separa o humano do político. Apoiado em Aristóteles, Marx considera o político como uma especificidade do ser do homem, estabelecendo uma condição política, baseada na produção coletiva dos meios de produção, para o estabelecimento de uma ontologia.

O anarquismo estabelece sua ontologia na afirmação de que a condição humana, é em si mesma ausente de referências artificialmente constituídas pelo corpo político. A ausência de referências sociais que definem e situam o indivíduo, estabelece sua condição primária como naturalmente livre, ou seja, ontologicamente indefinida. O humano não se trata de um atributo por onde se torna possível de definição. O humano é em si mesmo uma condição ausente de referências. É essa condição que chamamos liberdade. Todo homem nasce livre. Entretanto, como um ser livre se torna um trabalhador honrado ou um inescrupuloso criminoso, bom ou mal, feio ou bonito, inteligente ou ignorante?

Porque ele nasce na pólis, isto significa, a princípio, que a pólis trata de situá-lo como sujeito humano: certidão de nascimento, nome próprio, data de nascimento, origem paterna e materna, país. A cultura realiza a tarefa de um ditador: impondo o que considera legitimamente como humano e censurando como erro, crime ou imoralidade o que considera hostil a supremacia do Estado, bestial, animal. Existe uma cultura de sujeição ao corpo político, cuja função é exatamente situar o humano na organização e manutenção da pólis.

Anárkhos é afirmação de uma distância entre homo e pólis. É afirmação da liberdade, da ausência de referências impostas pelo corpo político e a objetividade. Anárkhos enquanto distância é subjetividade.

A autonomia entre o humano e o político se estabelece entre os anarquistas, na compreensão de que a natureza humana tem como seu fundamento a liberdade, situada no mundo. Sendo assim, o anarquismo não se trata de uma doutrina social de rebeldia contra os governos e a ordem estabelecida em si, mas sim, na afirmação de que todo governo ao restringir o existente a uma condição política, o desumaniza e o torna qualquer outra coisa, menos homem, e entre governos e homens, o anarquismo prefere este último, enquanto que os governos sempre terão como primeira lei, preservaram-se a si mesmo, antes mesmos de seus súditos.

Anarquismo é uma doutrina de liberdade, e quando falamos em liberdade jamais podemos separá-la da subjetividade, pois nesse caso, reinaria na ausência de referências o desespero. Todavia, não podemos situar a liberdade inteiramente ao terreno do subjetivo, Anárkhos representa essa tentativa de tornar o humano para além de uma condição subjetiva e pessoal (como acontece na democracia) e sim social, mas não política.

ANARQUISMO E CRISTIANISMO

Quando falamos em anarquismo cristão, se torna evidente num primeiro momento, que trazemos à tona, certa contestação da habitual maneira como a cultura, logo também, como os poderes vigentes interpretam e impõe sua visão do que seja o cristianismo e sua relação com o poder político, direta ou indiretamente. Sendo assim, a princípio e de modo bem suscinto, podemos afirmar que o anarquismo cristão seja de fato uma postura de contestação dos rumos tomados por toda a herança de fé deixada por Jesus, maculada ao longo do tempo quando transformada em doutrina política por Constantino e o bispo de Roma, e posteriormente pela reforma protestante, facciosa, partidária, moralista. É exatamente por isso que a expressão anarquismo cristão se torna estranha e causa até repulsa a muitos ouvidos desavisados, pois significa contestar aquilo que nossos ancestrais consideravam como ausente de qualquer tipo de questionamento: o vínculo do cristianismo com o poder político, origem de inúmeras transformações que culminaram tanto com a formação do que hoje conhecemos como cristandade e suas diversas expressões ao longo da história, como a formação do próprio conceito de Estado soberano (teocrático, monárquico, militar e democrático).

Como uma palestra cujo objetivo é apresentar de uma maneira breve, porém abrangente, alguns elementos fundamentais que constituem o corpo doutrinário do anarquismo cristão, evitarei, pelo menos nesta oportunidade, me ocupar da formação histórica da institucionalização do cristianismo, tendo como principal objetivo expor a atualidade do anarquismo cristão, sua viabilidade de ser empregado hoje. Sendo assim, o que é de fato o anarquismo cristão? Uma forma cristianizada de anarquismo ou uma forma anarquizante de cristianismo?

O VALOR DO LEGADO DE JESUS

Definir o cristianismo significa antes de tudo, determinar valor ao legado e a própria pessoa de Jesus. É exatamente essa a tentativa dos apóstolos e escritores sacros no desenvolvimento de seus evangelhos e epístolas. Em suma, a intensão que motivou a origem dos textos sacros que compõe o canôn do novo testamento é exatamente responder duas questões fundamentais: Quem é Jesus? Qual a sua importância para a humanidade? A segunda categoria de questões que envolvem essas perguntas se estabelecem no modo como as mesmas encontram sua resposta no próprio texto bíblico e as fontes em que se utiliza para a justificação da mesma. Os evangelhos, assim com as epístolas neo-testamentárias são unânimes quanto a afirmação de que Jesus é o messias, isto o vincula diretamente às profecias do antigo testamento e a tradição que lhes deram origem, e os evangelhos passam a ser escritos segundo essa perspectiva: de identificar os atos e palavras de Jesus ao cumprimento das profecias. Entretanto, é exatamente o termo messias que dentro da tradição profética se apresenta cheio de dificuldades. O que significa dizer que Jesus é o messias?:
"Para os messianistas da escola milenar, para os leitores obstinados dos livros de Daniel e Henoc, ele era o filho do homem; para os judeus da crença comum, para os leitores de Isaías e Miquéias, ele era filho de Davi; para os adeptos, ele era o filho de Deus, ou simplesmente o filho. Outros, sem que os discípulos os censurassem, o tomavam por João Batista ressuscitado, por Elias, por Jeremias, segundo a crença a crença popular de que os antigos profetas iriam se reanimar para preparar os tempos do Messias." (RENAN, 2004)

Não havia dentro da tradição profética uma definição uniforme sobre a identidade do messias, e as fontes eram inúmeras. A composição de cada evangelho não só dependeu de tudo o que Jesus fez e ensinou, mas também das fontes proféticas utilizadas por cada escritor sacro para identificálo ao messias. Se tornou evidente que não podemos falar da composição de todo o canôn do novo testamento, particularmente os evangelhos, sem remetê-los às influências que os mesmos sofreram da tradição profética. A tradição profética emerge no cenário religioso da teocracia judaica inicialmente como uma forma de contestação dos abusos de poder, particularmente da classe sacerdotal e da monarquia. Sendo assim, a princípio, em sua primeira fase, não evidencia interesse de um rompimento formal com o governo teocrático, pelo contrário, exige de sua administração atenção especial aos mais pobres e desfavorecidos, patriotismo (o que numa teocracia significa também a valorização do próprio monoteísmo[1]) e respeito absoluto para com as tradições religiosas. Em suma, a tradição profética em sua primeira fase (revisionista) apenas exige justiça, para o presente (ganhando um sentido crítico) e o futuro sendo assim, as profecias relacionadas a identidade do messias, o relacionam apenas a um rei – sacerdote justo, concentrando em suas mãos tanto o poder político quanto religioso, o servo, o profeta semelhante a Moisés, oriundo da descendência de Davi etc.

O discurso escatológico surge na tradição profética como resultado de longos períodos de exigência por justiça que não obtiveram êxito. Nele o que se contesta não é mais a forma como o sistema político é administrado, mas sim a própria estrutura que o justifica. Sendo assim, afirma implicitamente que não é a forma de administrar o poder que corrompe a conduta e o caráter dos homens, mas sim o próprio poder, e por isso exige, através de um apelo divino, a sua extinção. É exatamente no discurso escatológico que a tradição profética encontra destaque na composição dos evangelhos. É exatamente uma leitura escatológica dos evangelhos que nos permitem afirmar que o cristianismo é anárquico, o que queremos dizer que em ambas as ideologias, o verdadeiro valor que as aproxima é o seu caráter escatológico, atestado nos evangelhos e epístolas, mediante a influência da tradição profética. Isto significa, em ambas as tradições, separar o humano e o divino do político, estabelecendo assim uma ácida crítica ao conceito de humanidade e divindade como oriundo de artificiais convenções da pólis.

Definir o cristianismo como anárquico significar afirmar, mediante a tudo aquilo que dispomos da tradição apostólica, conferida por meio das escrituras, que o legado, assim como a própria pessoa de Jesus são fundados sob um valor escatológico, da vinda próxima do reino de Deus, característica herdada da tradição profética. O valor escatológico dos evangelhos consiste precisamente na afirmação de Jesus Cristo como juiz do mundo, isto é, da pólis, onde sua morte e ressurreição possui capital importância no desenvolvimento deste valor: é o mundo (autoridade políticas romanas e judaicas, com a omissão e consentimento do povo) quem crucifica Jesus, o messias, o próprio Deus encarnado, isto é, afirma com este gesto, não só a autonomia do político sobre o espiritual, como a própria negação deste último, reduzindo todas as convenções ao político – caso típico do marxismo. Entretanto, de modo inverso, é a ressurreição quem afirma a supremacia do espiritual sobre o político. Na tradição profética de índole escatológica Deus é Jesus. Morto pelo mundo, Deus é julgado pela pólis (é o conceito nietzschiano de morte de Deus), ressuscitado, Deus passa a ser o juiz da pólis.

A identificação do próprio sentido prático de anárkhos se confunde com o próprio sentido do que seja de fato o cristianismo dentro do movimento de cristãos anarquistas. Existem aqueles que pensam anárkhos como um fundamento moral de autonomia social que identificam na pessoa, mensagem e ações de Jesus Cristo. É o caso particular do pensamento de Toistói, que merece nesta ocasião, algumas ponderações importantes: Toistói compreende a conduta como a única possibilidade pela qual a humanidade se torna possível, pela qual a existência humana adquire sentido. A ênfase na conduta como via de humanidade é típica aos pensadores deístas, dentre os quais Toistói se insere.

DEÍSMO E TEÍSMO

Resumidamente, o deísmo consiste na crença da manifestação indireta da divindade no mundo, em outros termos, que Deus é uma entidade que embora existente não age diretamente em sua criação, justificando assim, a autonomia humana e a existência do mal como uso incorreto dessa autonomia. Sendo assim, Deus se restringe unicamente a condição de criador do mundo. Sendo
sua manifestação indireta, Deus cai na impessoalidade: ele é concebido apenas como uma força obscura e misteriosa que deu origem ao universo. Sendo sua manifestação indireta, Deus não possui um nome, sendo assim, ambiguamente ele não tem nome algum e ao mesmo tempo possui uma infinidade de identidades: Javé, Adonai, Allá, Shiva e etc. Sendo sua manifestação indireta, ela é intermediada: pela lei, sacerdotes, profetas e instituições (judaísmo), pela reencarnação (no espiritismo, budismo e outras), por espíritos (religiões fetichistas, animistas e espíritas) e por emissários (Buda, Maomé, Moisés, o próprio Jesus etc).

Sendo assim, todo deísta é extremamente tolerante no que se refere às crenças religiosas, o que no âmbito político o aproxima da democracia: a impossibilidade de manifestação direta da divindade faz com que todas as religiões sejam no fundo uma forma de se cultuar o mesmo deus, força criadora do universo.

Tal intermediação não provêm de um movimente de cima para baixo, do superior para o inferior, mas exatamente o contrário, do inferior para o superior, de baixo para cima: sendo assim, a salvação anunciada por todo tipo de religião deísta se estabelece como um tipo de aperfeiçoamento, de evolução, exercida através do esforço do próprio indivíduo. No deísmo o homem é o responsável pela sua evolução, conduzido pelos caminhos que o intermediariam com a divindade. Nesse aspecto, a conduta é a principal fonte de aperfeiçoamento. O deísta funda a ética como principal instrumento de aperfeiçoamento.

O deísmo cristão, diante do exposto, distingue Jesus da divindade. Ele é apenas o emissário, sendo assim, o cristianismo para o deísta, é uma doutrina reduzida a um bem elaborado tratado de moral, cuja finalidade é o aperfeiçoamento do homem no mundo e o modo de se relacionar com os seus semelhantes. Sendo assim, pode ser um instrumento eficaz de a submissão as leis, a moral pública, ao Estado. Leon Toistói interpreta o cristianismo levando o deísmo ao extremo, tendo como referência a análise do problema da resistência ao mal no cristianismo e sua completa omissão na cristandade, levando-o a uma crítica feroz desta última.

O que aproxima Toistói do deísmo é a sua tentativa de reduzir o cristianismo a uma doutrina moral de não resistência. Isso acontece porque ele percebe que a igreja Ortodoxa e o Estado Russo compartilhavam uma interpretação teísta do cristianismo fundada no autoritarismo. Em outras palavras, se Deus é um só e ele é Jesus ( como pensa o teísmo ), todas as outras crenças são falsas e seus deuses enganadores, por isso, deveriam ser eliminados, e os que resistissem a se converter deveriam ser mortos. A igreja passa a receber apoio do Estado e a força de execução do exército russo. Como resultado, Toistói passou a considerar a instituição cristã apenas uma extensão do Estado, o que não deixa de ser um fato. Se o Estado é autoritário e violento (como era o de sua época), a instituição cristã, a fim de garantir sua existência, deveria se adequar a sua moral, justificando- se pelas escrituras.

Participando de toda essa experiência de opressão, Em seu livro O Reino de Deus Está Dentro de Vós Toistói escreve sobre a exigência de uma ruptura, chegando a conclusão que, de acordo com suas leituras dos evangelhos, o cristianismo não nasceu autoritário, que Jesus não é autoritário. Se o autoritarismo do Estado e da Instituição cristã é fruto de uma compreensão teísta de um Deus vigilante e vingador, então, antes de romper com o Estado e com a igreja, Toistói rompe com a ideologia que legitimava o comportamento das mesmas, a partir da evidencia de submissão cega da instituição cristã ao Estado. Ele rompe com o teísmo da Igreja Ortodoxa Russa, consequentemente ele rompe com a igreja, e rompendo com a igreja, ele rompe com o Estado.

Um fenômeno muito comum entre as resistências anti- autoritárias é considerar como solução contra todo poder centralizador um poder plural e descentralizado. É uma característica dualista própria dos gregos, reduzir tudo num dualismo: bem e mal ( em moral ), belo e feio (em estética), ditadura e democracia (em política). Com Toistói não é diferente: escreve sobre o cristianismo por ser testemunha da religiosidade do seu tempo, contra intolerância (resistência) da cristandade oficial, por fazer uso da violência como forma de uma suposta autoridade espiritual ao mesmo tempo em que a mesma é servil aos poderes do Estado.

De maneira inversa ao deísmo, o teísmo se estabelece na crença da ação direta da divindade no mundo. Como consequência, Deus é pessoal, isto é, ele tem um nome, apenas um: Jesus. Sendo pessoal, Deus não se restringe a condição de criador, ele vem ao mundo, ele se importa com a humanidade e interage com ela, com seus problemas. Um deísta reagiria contra esta visão, por suscitar, segundo eles, alguns problemas:

Se Deus é unicamente Jesus, todas as outras formas se fé religiosa são uma mentira, suscitando por isso, por parte dos cristãos, um certo tipo de autoritarismo e intolerância, principalmente quando aliada a regimes políticos centralizadores. Assim se explica a intolerância medieval e da reforma protestante diante de outras formas de crença. Se Deus é unicamente Jesus, e ele como divindade veio a nós, a liberdade se torna uma falácia, visto o sentimento religioso de que Deus está entre nós, forçar uma obsessão pelo moralismo e a vigilância permanente da conduta. Além disso, a existência do mal se torna injustificada, sendo uma permissão do próprio Deus. Oriundo deste tipo de postura está a frase de Dostoievski: Se Deus não existisse tudo seria permitido. Por outro lado, outro problema do teísmo suscitado pelos deístas, se estabelece na compreensão de que se Deus veio a nós, isso significa que não podemos ir em direção a ele por nossa própria conta, levando a crer que a conduta por mais que se esforce não pode, jamais, aproximar o homem de Deus. É esse o conceito de graça: Deus se aproxima do homem não por merecimento, mas por amor gratuito. Para alguns isso poderia justificar a idéia de que o cristianismo não possua uma ética, e justifique todo tipo de conduta dentro da cristandade.

O fundamento do teísmo cristão se estabelece na afirmação de que a criatura longe do criador não têm sentido, ou seja, se existe um criador do mundo e do homem, a existência do homem somente pode descobrir o seu propósito com esse criador presente entre nós e em nós, em outras palavras, que ele seja pessoal, que ele seja uma persona. Tal pressuposto somente pode ser justificado a partir da idéia de que a distância que separa criador de criatura seja maléfica, origem de todo o niilismo. É essa distância que chamamos pecado e que justifica o deísmo, mesmo o cristão. O deísmo justifica um distância entre o homem e Deus, enquanto que o teísmo não se conforma com tal distância. Kierkegaard, cujo pensamento se destaca como cristão e libertário, se situa entre tal categoria de pensadores por levar o teísmo cristão às suas últimas consequências.

Sendo assim, não é característico de sua obra, essencialmente religiosa, falar da divindade de maneira etérea e distante, mas de um Deus cuja proximidade conosco o havia feito homem também, entretanto, sem se fundir inteiramente em nossa natureza, por não compactuar com o pecado. A partir de tal referência, do espiritual como contradição material (oriundo de uma distância entre ambos), seu pensamento se propõe a estabelecer as bases materiais para tal contradição, tematizadas pela tradição filosófica: contradição ontológica, epistemológica, ética e política. Nesta oportunidade, entretanto, me limitarei a uma descrição das dimensões ético e política de tal contradição.

O PENSAMENTO KIERKEGAARDIANO

Mas Deus escolheu as coisas loucas desse mundo para confundir as sábias... (1 Co. 1.27). Não há paixão que não deixe de contaminar o mundo com beleza, intensidade de cores, lírica imaginação, poesia e etérea fantasia do divino; que faz do corpo de uma mulher ou a taça de um bom vinho, condutores cegos que atenuam em nossa consciência, os impasses oriundos de uma época trágica e mitológica como a nossa, onde Muitos eruditos não têm inteligência (Demócrito, 1976), e toda argumentação não passa de retórica falaciosa de políticos, clérigos, fazedores de fagulhas, incapazes de criar uma fogueira. Pode porventura o cego guiar o cego? Não cairão ambos na cova?[2] Não há paixão que não deixe de excitar, elevando o coração até o limite de suas forças, e depois disso, o fazendo adormecer num sono pesado, para alguns sombrio e turbulento, enquanto que para outros, sereno. Não há paixão que enquanto excita, não deixe de criar, tornando o mundo um rio por onde não se pode entrar duas vezes – Somos únicos num mundo singular, irrepetíveis, livres.

Vivo numa época e numa sociedade intensamente apaixonada, porém cega, onde os vícios falam mais alto que a dor de consciência, de se estar sozinho frente a Deus: o carnaval já passou, já terminou a festa, todavia, muitos homens ainda não pararam de dançar, mesmo quando não há mais música, anseiam tombar de exaustão, do que ter forças suficientes para de pé, ousarem andar com equilíbrio. Precisamos de uma paixão que diferente de fechar nossos olhos, os deixem bem abertos e não nos permita dormir, pois para aqueles que estão de olhos fechados, somente existe a noite. Precisamos de uma paixão que nos atinja com a insônia febril que agita a vida e a retira da tumba do mundo das convenções e das fórmulas prontas e elegantes, de verdades que vivem debaixo dos nossos pés e não acima das nossas cabeças. Uma paixão que não nos sirva mais
de entretenimento à vida, a fim de esquecermos que morreremos, mas também de que vivemos. Necessitamos de fé.

Sendo assim, frase de São Paulo é oportuna: nela o apóstolo se esforça em promover uma síntese entre fé, loucura e mundo (cosmos), e não é ocasionalmente que o relacionamos a Kierkegaard: é evidente que a frase atribuída ao autor sacro nos oferece ocasião à Temor e Tremor, situando nosso admirável pensador à categoria de interprete religioso (o que para bem ou mal não podemos lhe outorgar o mérito), entretanto, sua iniciativa excede os limites da própria hermenêutica religiosa. Kierkegaard é um intérprete da vida, da sua vida, fundamental tarefa para todo aquele que almeja despojar-se do conformismo apático das massas e seus condutores cegos, portanto, não devemos cometer o equívoco de situar o pensamento kierkegaardiano como restrito a esfera religiosa, isso seria limitá-lo ao extremo: Kierkegaard pensa a vida e dela não exclui sua sacralidade, entretanto, não a reduz a uma regra – ela é exceção, é transcendência. Por outro lado, isso não a compromete como condutora de alienação. Kierkegaard pensa num movimento dialético de imanência (vivência) da própria transcendência. Sendo assim, sugere categorias existenciais por onde a oportunidade de transcendência se torna possível, através de uma transformação do próprio sujeito, alterando com isso suas relações com o mundo.

É familiar a temática de Temor e Tremor estabelecer-se na direção tomada pelo sujeito à transcendência, acompanhada por uma metamorfose de ser e ser no mundo. Processo acompanhado por contradições, pelo absurdo. É absurdo acreditar que Deus escolheu uma virgem, que por meio dela se encarnou e andou na terra entre os homens, dente os quais escolheu doze para os tornar seus discípulos; é absurdo acreditar que depois de três dias morto esse Deus encarnado ressuscitou. Entretanto, ao invés de situar sua exposição nas origens da doutrina cristã, Kierkegaard vai mais longe e se inspirou na poética, porém singular e dramática
trajetória do pai do povo Judeu, do existente Abraão. É absurdo acreditar que Deus concedesse o dom da paternidade a um ancião de cem anos, prometendo por meio desse filho único estabelecer uma nação. Entretanto, tal promessa apenas antecedeu uma exigência: o sacrifício, de oferecer a Deus o que ele mesmo deu. É por isso que Abraão ostenta a figura do homem que
ousou crer, crer no absurdo.

A citação paulina nos oferece o convite a uma proposta fundamental de reflexão contida em Temor e Tremor: a tênue linha que associa e também distingue fé, crime e loucura, através da singular exigência vivida pelo patriarca em ter que sacrificar seu filho. Kierkegaard não se limita a conceber a fé apenas enquanto consciência do divino, pelo contrário, pressupõe consciência de um divino que exige (a exigência demonstra que Deus não age de maneira independente – por cima da cabeça dos homens, como o espírito absoluto de Hegel – mas em cooperação com os mesmos) e de obediência a tal exigência, estendendo seus limites da ontologia à ética e consequentemente à política e a cristandade.
"E disse (Deus): Toma agora teu filho, o teu único filho, Isaque, a quem amas, e vai-te à terra de Moriá, e oferece-o ali em holocausto sobre uma das montanhas, que eu te direi. Então se levantou Abraão pela manhã de madrugada, e albardou o seu jumento, e tomou consigo dois de seus moços e Isaque, seu filho; e fendeu lenha para o holocausto, e levantou-se, e foi ao lugar que Deus lhe dissera." (Gn. 22.2-3)

A moral reduz a exigência divina num crime, onde Deus se esconde do mundo e Abraão só, diante da cena cruel que estava prestes a concluir, se reconhece como um assassino. Enquanto criminoso, Abraão não está ausente de sua responsabilidade. O ato de levantar o cutelo contra Isaque é um ato responsável.
"Se a fé não pode santificar a intensão de matar o filho, Abraão cai sob a alçada dum juízo aplicável a todo mundo. Se não há coragem para ir até o fim do pensamento e dizer que Abraão é um assassino, mais vale então adquirí-la primeiro do que perder o tempo em imerecidos panegíricos. Sob o ponto de vista moral, a conduta de Abraão exprime-se dizendo que quis matar Isaac, e sob o ponto de vista religioso, que pretendeu sacrificá-lo." (KIERKEGAARD, 1974)

O grande dilema de Abraão consistia precisamente em obedecer a exigência divina diante da censura de uma ética universalista, típica de todo tipo de força de coesão social, como é o caso das leis civis e religiosas. Se torna evidente que tal ética não sabe distinguir o humano do divino, precisamente porque não prevê formas de exigências que lhe sejam superiores, em suma, ou a ética é divina ou o divino não pode se reduzir a ética por ultrapassar suas exigências. É exatamente esse o ponto de partida de Kierkegaard para a defesa de Abraão, lançar uma crítica ácida a formulações uniformes de conduta.

Para a ética Abraão não possui subjetividade no sentido estrito da palavra. Ele é julgado pelo que ele faz, o que o reduz a condição de assassino. Sendo assim, a primeira de suas premissas é que o ser se reduz ao fazer, e a segunda é que o fazer deve estar em conformidade com princípios aplicáveis a qualquer homem. Em suma, que a ética que julga Abraão é a mesma que define o sentido próprio de ser humano através da conformidade da conduta dos mesmos com princípios universalmente válidos (pela força de uns ou comodismo da consciência de outros).
"O fato de se estar originalmente fora do geral, por natureza ou por consequências da história, constitui o princípio do demoníaco, e o Indivíduo não é responsável (...). O demoníaco pode, ainda, manifestar-se pelo desprezo para com os homens, e, coisa curiosa, esse desprezo não leva o sujeito demoníaco a agir de forma censurável." (KIERKEGAARD, 1974)

O demoníaco corresponde a manifestação da subjetividade em correspondência com a própria ética, sendo fundamentalmente oriunda de sua providência. Em outras palavras, é a suspensão do indivíduo às exigências da própria ética pela ética, o que impede que sua conduta seja julgada pela uniformidade (ou inconformidade) com o direito. É a definição kierkegaardiana do louco, onde o indivíduo não é responsável por sua conduta e por isso não pode entrar em conformidade de julgamento como os demais homens.

O PENSAMENTO DE TIAGO

Existe na carta de Tiago um vigor peculiar que lhe difere bastante das outras cartas apostólicas. Paulo, Pedro e João escrevem com o mesmo cuidado minucioso de escultores – ou políticos, conciliadores de classes. Tiago escreve como se estivesse no meio de uma luta, o que torna sua visão de cristianismo como a mais intransigente do ponto de vista social: perseguições, dissenções internas provocadas por espírito faccioso, concessão de poder e privilégios aos mais ricos dentro da igreja[3], problemas que o apóstolo combateu energicamente em sua carta. Tiago escreve como um intransigente defensor dos pobres e da fé (2.5-6) e da ação como superior ao discurso (2.26), características fundamentais do mosaísmo, reinterpretados agora segundo a vida e mensagem de Jesus. Levando a crer que para ele o cristianismo não representava de maneira nenhum algum tipo de desobediência a lei (pois no mosaísmo a lei é divina), mas sim, aos homens corruptos que a administravam em busca de benefício próprio, prova da influência que a tradição profética exerceu sobre o seu pensamento.
"Adúlteros e adúlteras, não sabeis vós que a amizade do mundo é inimizade contra Deus? Portanto, qualquer que quiser ser amigo do mundo constitui-se inimigo de Deus." (Tg. 4.4)

Existe uma distância entre Deus e o mundo (cosmos), tema central deste versículo, isto significa, que não há referências sociais e políticas que definam o divino e suas leis, que não existe mais a possibilidade de mediação política entre o humano e o divino, e até mais, de que o espiritual não constitui mais uma dimensão política. Como consequência, o que Tiago propõe é exatamente desenvolver uma áspera crítica a já decadente teocracia judaica e seu conceito de mediação, que sobrevive no primeiro século às custas de inúmeras alianças políticas com o império Romano, ao mesmo tempo em que se dirige a sua comunidade. Como consequência, está a contestação de toda forma de institucionalização da relação entre homem e Cristo, isto significa, não apenas separar Igreja e Estado, como também torná-los forças visivelmente antagônicas entre si.

Existe uma distância entre Deus e o mundo, como consequência, a relação entre o humano e o divino não se estabelece objetivamente, mas sim, através da subjetividade e da responsabilidade individual, contestando assim uma série de moralismos condutores de rebanhos, que fazem da conduta uma espécie de referencial entre o humano e o divino, uma espécie de rédea por onde se fundamenta o poder dos sacerdotes.

Existe uma distância entre Deus e o mundo, em suma, que amar e obedecer a Deus estabeleça a exigência de um rompimento com o mundo (a pólis). É nesse aspecto que anarquismo e a fé cristã podem estabelecer um tipo de conciliação, pois ambos refletem a distância do indivíduo com as artificialidades do mundo ao seu redor. Distância que não apenas significa estranhamento
ou um estado de quietismo e contemplação monástica das vicissitudes humanas, mas sim de inconformação, por onde se estabelece o empenho em se redesenhar os contornos do mundo, da conduta dos homens, de sua relação com a natureza, as artes, as ciências, a vida.
"Existe uma distância entre Deus e a sociedade por onde o homem é considerado simples força de produção, anônimo imerso na multidão de outros tantos como ele, desorientado quanto ao sentido da sua própria vida, se afoga na tentativa de descobrir-se a si próprio em paradigmas que envelhecem com o tempo, determinando sucessivas crises espirituais que lhe definem a própria história. Ir em direção ao Deus que se opõe ao mundo: verdadeiro sinal de descoberta, não só do divino, mas de nós mesmos, verdadeiro sinal de anarquia, do Deus que que se encarna e é crucificado pelo mundo, verdadeiro sinal de Cristo." (SANTANA, 2007)

Em suma e de maneira sucinta, a tese levantada por Tiago é exatamente que a subjetividade por meio da fé é uma contradição política, contraditória à pólis. A mesma tese é levantada em Temor e Tremor por Kierkegaard, entretanto, sob uma perspectiva ética. A fé enquanto exigência divina de amor a Deus, exige um rompimento do indivíduo com a moralidade social (leis e normas culturais de conduta). O cerne desta questão se estabelece no conceito do humano na cultura ocidental: influenciada pelos gregos, nossa cultura concebe o humano (homo) como orientada pela relação do indivíduo com a coletividade (a pólis), estabelecida por sua capacidade racional em explorar e manipular os recursos naturais em benefício da sua sobrevivência na coletividade, daí a definição aristotélica de que o homem é um animal político, isto é, de que é exatamente a vida numa sociedade organizada politicamente, que o distingue da animalidade. Sendo assim, para a pólis o conceito de humano está na força de produção. Para a pólis o homem é simples força de produção, nada mais. O cristianismo vai reagir diretamente contra essa visão grega: o homem não é um animal político, sendo assim, o que define o homem não é a sua vida em sociedade. O humano não é uma categoria definível sociologicamente.

Quando falamos da relação entre fé e subjetividade e o vinculamos a um conceito cristão do humano, estamos nos referindo a presença de um Deus que não habita mais no mundo da natureza, da história e da política, que não lhe confere mais sentido. Entretanto, de uma maneira indizível ainda sim, dá sentido a vida do homem, pois lhe é criador, e enquanto tal é o verdadeiro fundamento (pathos) do humano[4]. Este é o significado de fé: participação do divino na vida íntima do homem, significa sua participação diante das angústias humanas, do medo da morte e sensação de insignificância diante dos poderes que os exploram. Aquilo que os padres gregos da igreja chamavam Teósis ou deificação, e os latinos de Fides (literalmente fidelidade), isto é, a participação divina da natureza humana possibilitou ao homem participar da natureza de Deus e por isso, tornar-se seu filho. É uma via de mão dupla: Deus participa da vida humana e o homem participa da vida de Deus – determinando assim o surgimento de exigências, prova de que Deus não age sozinho na história, de que não pisa na cabeça dos homens, mas lhes sugere colaboração. Isto significa viver entre a rivalidade de dois mundos: o reino de Deus e o reino dos homens:

O QUE É IGREJA?

Se o cristianismo em sua dimensão escatológica exige a separação do divino e do humano das convenções políticas, se torna evidente que a sua institucionalização, fruto de sua transformação em doutrina política, através da racionalização de toda a doutrina de Jesus, dando origem a formação de dogmas ( com exceção do batismo e da eucaristia, ritos instituídos por Jesus ), se torna uma perversão, sintetizadas na formação do templo. A construção de um novo templo, uma nova denominação, com uma nova eclesiologia, liturgia e dogmática antes de significar uma aceitação social parte de uma convenção política, coisa que a igreja apostólica não compartilhava.
"A idéia de igreja, com efeito, não difere qualitativamente da de Estado, desde que o Indivíduo pode entrar aí pela mediação, e, quando entrou no paradoxo, não chega à idéia de igreja; encerrado dentro do paradoxo, encontra nele, necessariamente, ou a sua felicidade ou a sua perdição. O herói que obedece à igreja exprime, na sua ação, o geral, e não há ninguém aí, nem mesmo o pai e mãe, que não o compreendam." (KIERKEGAARD, 1974)

"E assim se julga o cristianismo na “cristandade”. Artistas dramaticamente vestidos comparecem em construções artísticas - não há na verdade nenhum perigo, é entretanto, o mestre, funcionário real, que ascende gradualmente e faz carreira – e agora joga dramaticamente o cristianismo, em resumo, faz comédia; e discursa acerca da renúncia, pelo mesmo ascende gradualmente, lhe ensina a desprezar títulos e cargos mundanos, pelo mesmo faz carreira, descreve os magníficos os profetas que foram assassinados, e a cantiga é sempre a mesma: se tivéssemos vivido no tempo dos nossos pais, não teríamos nos unido a eles para derramar o sangue dos profetas – nós, que construímos seus sepulcros e adornamos suas tumbas. É dizer que não se quer ser (como constante, encarecida e suplicante tem proposto) ao menos tão honesto para reconhecer que não se é em absoluto melhor que aqueles que matara os profetas; não, se queres aproveitar a circunstância de que não se é contemporâneo com eles para crer-se muito, muito melhor que aqueles que os mataram, seres totalmente distintos daqueles desumanos – porque é obvio que o somos, dado que construímos os sepulcros dos tão injustamente assassinados e adornamos suas tumbas." (KIERKEGAARD[5])

Segundo o testemunho apostólico, as primeiras comunidades cristãs surgiram com o objetivo de render culto ao messias Jesus Cristo, crucificado sob a acusação de insujeição política a César, e por declarar-se o messias, o libertador do povo judeu. Cultuar a Jesus seria conservar esse tipo de insujeição, o que para as elites políticas e religiosas romanas e judaicas seria desobediência civil e heresia. Sendo por isso, motivos de vigilância e perseguição política. A igreja, nasce não apenas como comunidade de fé, mas também de esperança, de consolo contra a perseguição sofrida. Sendo assim, motivada através da fé na ressurreição de Jesus. Sem a igreja a perseguição já teria destruído o legado de Jesus. Não se tratava de uma instituição, mas de uma comunidade. Num regime democrático, onde a perseguição religiosa é crime, a igreja se torna desnecessária. Entretanto, é preciso considerar que ao defender a liberdade religiosa a democracia não pretende ser uma defensora da fé, mas sim, sua maior opositora. Ao defender politicamente a liberdade religiosa, a democracia defende que fé cristã além de ser igual a qualquer outra fé, não tem importância social. Uma reação a tal conceito motivaria uma rede de eventos que resultariam em perseguição e como tal na possibilidade do início de um tipo de comunidade cristã, mais próxima à finalidade pela qual a igreja foi criada.

CONCLUSÃO

O anarquismo estabelece sua doutrina na afirmação de que o humano não se fundamenta no político. Por sua vez, o anarquismo cristão insere nessa categoria também o divino. Como consequência, é inevitável que ambos se tornem socialmente marginais, excluídos. A temática da marginalização do homem e do divino se tornam portanto, o ponto de partida para uma séria reflexão sobre a possibilidade de libertação social de todo tipo de excluído, lançando assim, uma ácida crítica a todo tipo de sistema opressor. Neste aspecto, o que nos aproxima da movimento da teologia da libertação, entretanto, levando em conta a influência que o marxismo exerceu sobre tal movimento, situando o seu protesto social- teologal ainda dentro da esfera política, divergimos da mesma neste aspecto, baseado na premissa que não se trata apenas de evidenciar o pobre, o marginal e todo tipo de minoria como consequências de uma sociedade excludente e agressivamente competitiva, que faz do lucro um valor superior a própria vida. Não se trata apenas, tendo como recurso um discurso inspirado nos profetas do antigo testamento e nos evangelhos, evidenciar um apelo divino frente as lideranças políticas deste mundo, por mais justiça e misericórdia para toda a criação, o que inclui o homem. Não se trata apenas disso, mas vai além. É preciso conferir às pessoas identidade. Nosso século (assim como os séculos que nos precederam) é marcado, à sua maneira, por uma permanente crise de identidade, oriundas das mais diversas matizes (política, econômica, religiosa, cultural e etc), formas banais e transitórias, que justificam fundamentalmente uma crise de ser homem. Não só fundadas no político, mas justificada por ele. É preciso uma reação, fundada na iniciativa de independência humana do político, sendo assim, de compromisso solidário e autônomo, inspirados pelo valor do evangelho e da fé em Jesus.

Que Deus nos ajude nesse compromisso.


BIBLIOGRAFIA
RENAN, Ernest. Vida de Jesus. Coleção Obra prima de cada autor. Martin Claret, 2004.
SANTANA, Diogo. Fé e anarquia cristã. Corifeu, 2007.
__________. O Deus de carne: uma introdução a Cristologia. Virtualbooks, 2009.
KIERKEGAARD, Soren. Temor e tremor. Coleção Os pensadores, 1974.
DEMÓCRITO. Os Pré-Socráticos. Coleção Os pensadores, 1974.

NOTAS
* Texto escrito em ocasião da Aproximação de cristãos libertários e simpatizantes, realizada no dia 28 de março de 2009 em frente ao Centro Cultural São Paulo na rua Vergueiro, 1000 - SP/SP.
** Diogo Alves da Conceição Santana é filósofo e escritor cristão, publicou pela editora Corifeu o livro Fé e anarquia cristã (2007) e pela editora Virtual Books o livro O Deus de carne: uma introdução a Cristologia (2009).
[1] O politeísmo visto sob um ponto de vista político facilitava diversas alianças entre os povos da antiguidade. A adoção do panteão de deuses de outros povos assim como a homenagem pública aos mesmos, nutria entre seus governantes um sentimento de amizade, fortalecendo assim o poder militar. O monoteísmo enquanto doutrina também política, torna a soberania nacional uma exigência, gerando por conta disso uma série de conflitos com muitos povos politeístas ao redor, pois indicava intransigência aos interesses da nação.
[2] Cf. Lc. 6.39.
[3] Sugerindo que nessa época Tiago, já então bispo de Jerusalém, já fosse bem idoso, e tivesse apenas a função do presbiterado (de aconselhamento), sem poder definitivo de decisão.
[4] Tal assunto é extenso demais para ser trabalhado nesta oportunidade, entretanto, merece algumas colocações importantes: é a própria presença de Deus que descendo ao coração do homem, lhe permite crer nele. No antigo testamento, a fé não tinha tal conotação subjetiva, mas objetiva, onde o homem podia ver a Deus (através da sarça ardente, da nuvem, da coluna de fogo, das cordonizes, do maná etc), mas não podia crer. Hoje, cremos, mas não vemos. Isso acontece pela distância do divino com a objetividade (a mesma distância que Tiago se refere).
[5] Como Cristo julga o cristianismo oficial. Tradução para o português feita pelo autor deste ensaio.

Nenhum comentário: