sábado, 14 de junho de 2008

O Desespero Humano

" Oh! sei bem tudo o que se diz da angústia humana... e presto atenção, também eu conheci, e de perto, mais de um caso; o que não se conta de existências malbaratadas! mas só se desperediça aquela que as alegrias e tristezas da vida iludem a tal ponto que jamais atinge, como um ganho decisivo para a eternidade, a consciência de ser um espírito, um eu, por outras palavras, que jamais consegue constatar ou sentir profundamente a existência de um Deus, não tão pouco que ela própria, "ela", o seu eu, existe para esse Deus, mas esta consciência, esta conquista da eternidade, só se consegue para lá do desespero. E esta outra miséria" tantas existências frustradas dum pensamento que é a beatitude das beatitudes! Dizer- ai de nós"- que nos entretemos e que se entretêm as multidões com tudo, exceto com aquilo que importa! que as arrastam a disperdiçar a sua vida no palco da vida sem nunca lhes recordar essa beatitude! que as conduzem em rebanhos... enganando-as em vez de as dispersar, de isolar cada indivíduo, a fim de que sozinho se consagre a atingir o fim supremo, o único que vale que se viva e que tem com que alimentar toda uma vida eterna. Perante essa miséria eu poderia chorar uma eternidade inteira! Mas mais um horrível sinal dessa doença - a pior de todas - é o seu segredo. Não só o desejo e os esforços bem sucedidos para escondê-la daquele que a sofre, não só que ela o possa habitar sem que ninguém, ninguém a descubra, não! mas ainda que ela de tal modo se possa dissimular no homem que nem ele se dê conta! E, esvaziada a ampulheta, a ampulheta terrestre, reduzidos a silêncio todos os ruídos do século, acabada nossa agitação febril e estéril, quando em redor tudo for silêncio, como na eternidade - homem ou mulher, rico ou pobre, subalterno ou senhor, feliz ou mal- aventurado, quer a tua cabeça tenha suportado o brilho da coroa ou que, perdido entre os humildes, não tenhas tido mais do que as penas e os suores dos dias, quer a tua glória seja celebrada enquanto durar o mundo ou esquecido, sem nome, anonimamente sigas a multidão inumerável; quer o esplendor que te rodeou tenha ultrapassado qualquer descrição humana, ou os homens te tenham aplicado a mais aviltante das condenações, quem quer tenhas sido, a ti como a cada um dos milhões dos teus semelhantes, a eternidade duma só coisa inquirirá: se a tua vida foi ou não de desespero, e se, desesperado, tu ignoravas sê-lo, ou soterravas em ti esses desespero, como um segredo angustioso, como o fruto dum amor criminoso, ou se, horrorizando os mais, desesperado, gritavas enfurecido. E, se a tua vida não foi senão o desespero, que pode então importar o resto! vitórias ou derrotas, para ti tudo está perdido, a eternidade não te dá como seu, ela não te conheceu, ou, pior ainda, identificando-te, amarra-te ao teu eu, o teu eu de desespero!."
KIERKEGAARD, Soren Aabie. O Desespero Humano. Coleção Os Pensadores, 1974. pag. 348.

Nenhum comentário: